11 de dezembro de 2013

Carunchos

Ilustração de Jonas Gomes



A palavra amarga: lavrada, traçada.
Trama mordaz.
Tecido fugidio.
Pesada. Prensada.
Expõe vísceras e vicissitudes
a tocar trombetas ou alaúde:
Alude.
Traz a tona.
Alheia, aleatória. Cruel, contraditória.
Por falta de manual, o pecado da injúria.
Por julgá-la banal, omissão.
Esquiva. Altaneira.
Motivos insípidos, caráter inzoneiro.
Escapa ao bom senso
Esquiva-se por frestas.
Atenção: não alimente os (tais) animais.





Naiana Carvalho


19 de abril de 2013

O indulto


Ilustração de Jonathas Alpoim



as coisas de bem
as coisas que vão
provado, amado, vivido
hoje excluído de sentido ao ver ter sido fundamentado no não sabido vazio
certezas voláteis
rasas comparações
parâmetros desregulados
falhas calibrações
a imagem que não recorda
um querer há muito esquecido
a palavra encarnada
pelo perdão não concedido
a mácula encardida
cárcere particular
coração cego na pedra de amolar
o tanto que era nada
o nada salvador
significados e reentrâncias
restauram o andor
pranto resfolegante
a cerzir o pedaço que lhe faltou
concessão para a lucidez
ao porvir o seu pendor
e devagarinho
em cada passo pequenino
o vão faz-se caminho
o peito converte-se em ninho
para que indulgente, quintaneante, a alma possa 
satisfeita lembrar...
"eles passarão, eu passarinho"


Naiana Carvalho


19 de fevereiro de 2013

Vertigem




Ilustração de André Rodrigues



Acepipe da vida
A Terra em rotação
Lonjura tátil
Desfeita em pedaços
Sem pontual premeditação



Por acaso chegara ao topo
Por descuido, à beira
Tomou-lhe a privação de sentidos
Em plena manhã de quarta-feira


Vertigem
O chão salta aos olhos
E do alicerce faz-se papelão
Feito paixão sem aviso
Comprometido o juízo
Corrompida a razão


Adormecidas as extremidades
De olhos baços
Coração em sobressaltado
Gravidade, lei
Desvario, definição
Rubra tinta vermelha
Feito tela
Tinge o raso chão


Fora atraído pelo limite
Envolto de forma sutil
Turvada a rala visão
A cabeça em rodopio
Mesmo não havendo motivos
Ou genética predisposição


Houvera quem julgasse
De tropeço, queda, a solução
Profanando a origem
Da atraente vertigem
Fascínio, inclínio, propensão


Sem bilhete ou testamento
Perdia-se o nexo
Faziam-se perplexos
Em frágeis elocubrações
Pois sabiam-no feliz
Tinha casa, carro, emprego
E um alto limite no cartão

Estava de férias programadas
E viajaria em família
Tão logo chegasse o verão





Naiana Carvalho





"...e tropeçou no céu como se fosse um bêbado
...e flutuou no ar como se fosse um pássaro"
Chico Buarque





1 de fevereiro de 2013

A Ideia em crise

Ilustração de Weberson Santiago




Sumiu o acento de ideia
E a Ideia inconformada
Sentou sozinha no chão
Não entendia porque motivo
Sem passar por seu crivo
Mudaram sua compleição

Já não sentia-se tão brilhante
E paranoica com as novas regras
Desejava ser exceção
Por conta disso resolveu-se
Pelos amigos em assembleia
Que Ideia precisaria de severa intervenção

Fez terapia em grupo
Comportamental
E até meditação
Mas ao ver-se escrita
Faltando-lhe o acento
Entrava em profunda comoção

Tentaram convencê-la
Com gramáticos argumentos
Que este era um privilégio
E não uma suposta exclusão
Mas Ideia não aceitava
E pra acabar com o impasse
Pediu que agora a chamassem
De Intelectual Elaboração.



Naiana Carvalho


27 de novembro de 2012

Poesia e canção

Ilustração de André Rodrigues



Do que se alimenta a poesia? 
O que come uma canção? 
Se é a alma que transcende e sobeja em tênues linhas 
                                                                          ou se é fruto de empenho e dedicação, 
não se pode definir assim tão facilmente, 
                           encaixar levianamente 
                                                          em qualquer frágil padrão. 

Sei que algumas simplesmente nascem, 
                     brotam,  
                               florescem 
mesmo em árido chão, 
enquanto outras precisam ser construídas, 
                      lapidadas 
             da primeira estrofe 
                   até o refrão. 

No entanto não importando sua natureza, 
os meios de cultivo 
ou a forma de extração, 
é uníssono que são fundantes de mais rico processo de transformação.




Naiana Carvalho


22 de novembro de 2012

Nada me é alheio

Ilustração de Weberson Santiago




já dei nome de anta, já levei nome de bruta
já me tomaram por santa, já me fizeram de puta
já sonhei em pleno dia, já vi sol em noite escura
já lamentei em casamento, já sorri em sepultura
já quis o improvável, já desejei não ter mais cura
já dormi em berço esplêndido, já passei noite na rua
já defendi o que é concreto, já estudei ciência oculta
já jurei pela verdade, já me rendi ao que simula
já roubei caneta bic, já fingi na cara dura
já desisti de ser pra sempre, já venci muita disputa
já desafiei a gravidade, já desafinei em nota aguda
já dancei Beto Barbosa, já dormi com o Neruda
já gritei por liberdade, já fui alvo de censura
já fui aquele que oscila, já almejei o que perdura
já sofri pelas respostas, já morri pela loucura
já amei o que encontra, hoje sou o que procura.



Naiana Carvalho




"E é tão bom não ser divina"







21 de novembro de 2012

À madrugada


Ilustração de Morena Forza


Madrugada, 

que traga alento à contento
por medida o cabimento;
E ao pensamento em devaneio,
descanso em doce leito

Hoje, não arda
Tarde em clarear
porque o sol não desponta sem teu consentimento

Então fica,
cumpre teu papel,
usa dos teus instrumentos,
lápis, pena ou cinzel,
e grava na mente vaga,
nas mãos espalmadas
aquela lembrança que é válida...
a memória cálida
esparsa
de que tudo pelo que se vive
um dia 
enfim
sempre acaba.



Naiana Carvalho



29 de outubro de 2012

Habitual

Ilustração de Weberson Santiago



O além
O desdém
O aqui
O aquém
O porvir
O porém
O devir
E o amém

O hálito do hábito
O porvir e o porém
O ponteiro, o compasso
O valor e o vintém
Num espaço esparso
O devir e o desdém

Ante, até, após
Ali e além
Rogai por nós
Aqui ou aquém
Abençoada seja a habitual sucessão
Amém



Naiana Carvalho



21 de outubro de 2012

O fim das coisas. O capítulo um.

Ilustração de Denis Zilber



O fim da noite é o dia
Do amor ferido, solidão
Do bom momento, nostalgia
Pelo vivido, a gratidão
Nem todo som é melodia
Nem toda letra vira canção

O fim do querer, nem sempre se concretiza
No que se cria, às vezes, decepção
O fim das coisas pode ser recomeço
Para o primeiro passo, o empurrão
Pra quase tudo existe preço
Finalidade, intento, remissão

O fim pode ser limite
Dos dinossauros, extinção
Onde tudo se finda
E principia a expansão
O fim pode ser propósito
Alvo ou deliberação

Cercado de lamentos e esperança
Ao fim de um ano, celebração
O fim principia ciclos
De uma vida, a redenção
Nem sempre ao que se chama fim
Corresponde uma conclusão

O fim do casulo é borboleta
Da arte, exposição
No fim da vida, a gentileza
No fim da tarde, contemplação
O fim justifica o meio
Mas para o meio não há perdão



Naiana Carvalho





20 de outubro de 2012

Projeção

Ilustração de Alessandro Gottardo




Porque solidão, casa
Porque dúvida, remo
Porque sonho, asa
Porque desejo, pleno

Vendo areia, castelo
À nuvem, dragão
No anseio, modelo
Por real, ficção

Mesmo o querer satisfeito não supre a inebriante fantasia






Naiana Carvalho



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